No fim do ano passado li a notícia que Andrea Bocelli, tenor italiano de inspiração lírica e alma pop, desbancou rappers e popstars no número de venda de álbuns na semana de lançamento nos Estados Unidos.
A razão desse sucesso, que não se via há 20 anos no mercado da música clássica, deve-se principalmente às redes sociais. Como explicou um executivo da gravadora, milhares de dados de posts no Facebook e no Twitter foram analisados para definir o que um fã do tenor mais gosta de ouvir. O álbum, então, foi produzido a partir das preferências da audiência, baseando-se em melodias acessíveis e duetos com músicos atuais como Ed Sheeran e Dua Lipa.
Lembrei-me dessa história ao ver Rami Malek subindo ao palco para receber o prêmio por sua sensacional interpretação de Freddie Mercury no filme “Bohemian Rhapsody”. O que se vê no filme são os esforços do Queen em criar obras que transmitissem significado e seus próprios sentimentos, mesmo que para isso, precisassem confrontar os executivos das gravadoras.
Gravar ou filmar “aquilo que vende”, com minimização do risco, é uma prática antiga e usual do mercado do entretenimento. Além da indústria fonográfica, o entendimento das preferências do público vem moldando a produção cinematográfica de Hollywood há várias décadas. Se formos buscar um exemplo mais próximo, as novelas brasileiras vão e voltam em seus enredos conforme pesquisas de audiência.
O que mudou é o método de tomada de decisão. Se nos anos 70, a intuição predominava e os artistas davam a palavra final, hoje as decisões são majoritariamente data-driven.
A camada mais visível dessa mudança são as listas de recomendações e as playlists geradas conforme os hábitos de consumo de conteúdo e histórico de navegação dos usuários. Mais profundamente, esses dados estão sendo utilizados para moldar a produção artística. Nesse sentido, a Netflix tem uma posição de destaque, tendo investido USD 8 bilhões em conteúdo original em 2018 e desbancado uma gigante como a HBO em nomeações do Emmy naquele ano.
Quanto mais conteúdo, mais gente assistindo e mais dados do usuário para gerar novas produções. Numa época onde qualquer usuário da internet é potencialmente um produtor de conteúdo, o cenário parece bastante promissor para novos diretores de cinema e músicos pop.
Há, contudo, uma força antagônica nesse mercado. Se por um lado a produção nunca foi tão intensa, cada vez mais os algoritmos estão afunilando os gêneros em direção àqueles mais consumidos. Sistemas de inteligência artificial estão sendo treinados para compor música – “Daddy’s Car” – e escrever roteiros de filmes – “Sunspring”. Será que então o pensamento abstrato e a manifestação criativa, que pareciam ser os últimos bastiões imunes à automação, também vão desaparecer?
Talvez seja cedo para responder, mas não acredito nessa hipótese.
Acredito que os excessos da intuição e dos gastos desenfreados que no passado nortearam a indústria do entretenimento (e também da publicidade) chegaram ao limite. Em oposição, o acesso às informações de preferências da audiência, até então desconhecidas, acompanhadas de uma capacidade de processamento cada vez maior dos computadores nos levaram a uma obsessão pela análise fria dos dados.
Agora percebo que o pêndulo está começando a voltar para um ponto de equilíbrio, onde a experimentação e a intuição vão andar lado a lado com programas de inteligência artificial para criação de uma nova realidade da indústria do entretenimento.
Temos milhões de produtores querendo expressar sua visão de mundo e suas emoções e, do outro lado, milhões de consumidores de conteúdo desejando se apaixonar por melodias, histórias e imagens e, no meio, uma tecnologia que poderá unir essas pontas.
Is this the real life? Is this just fantasy?